Ninguém sai sem uma reflexão de uma conversa com Vicky Bloch. Enquanto fala, ela, que é uma das mais reconhecidas consultoras de altos executivos do país, mantém o brilho nos olhos e lê cenários atualizada com o seu tempo e amparada pelo profundo conhecimento sobre pessoas e métodos cultivados em quase 50 anos de experiência na área. Hoje, Vicky se dedica à orientação, ao desenho de novos projetos profissionais e no desenvolvimento de competências de CEOs, bem como ao apoio de famílias empresárias em processos de transição, sucessão e educação das próximas gerações.
Por isso, o Reputation Feed convidou a fundadora e sócia da consultoria Vicky Bloch Associados, articulista do jornal Valor Econômico, professora na FIA e no IBGC, para tratar sobre os desafios dos líderes contemporâneos, a força da governança (e a necessidade de reconstrui-la, tendência que ela mesma aponta nesta entrevista) e a importância da reputação na jornada da liderança.
Vicky também traz insights valiosos sobre o complexo ambiente das organizações e avalia o papel do líder para gerar engajamento, além dos efeitos das mudanças de comportamento e da forma de se relacionar no mundo corporativo a partir da pandemia da covid-19.
A seguir, os principais trechos de uma conversa feita no escritório de Vicky, em São Paulo.
Novo código de relações no ambiente corporativo
Muita gente está angustiada com esse ambiente de constante transformação e, agora, com os impactos da Inteligência Artificial. Porém, é importante ter clareza de que as mudanças não são recentes. Estavam latentes há décadas, vinham em um continuum. Aí a pandemia fez a ruptura do locus físico. A questão virtual entrou galopando e estabeleceu um novo código de comportamento, um novo código de relação entre pessoas. É quase impossível criar um ambiente de confiança sem pelo menos uma relação presencial. E nós ficamos isolados, sem essa possibilidade.
“É quase impossível criar um ambiente de confiança sem pelo menos uma relação presencial.”
O incrível dessa história é que, por outro lado, houve uma democratização da organização, com consequências muito sérias para as lideranças. Todo mundo era um quadradinho na tela do computador, não importava o cargo, se era mais ou menos importante. O CEO não tinha um quadrado maior, era igual para todo mundo. Um executivo de reconhecida trajetória, com passagens por empresas e instituições de ponta, comentou comigo, muito animado, que começou a ver inteligências escondidas, talentos que até então não eram visíveis em função da posição dele na organização.
Transformações no modelo de liderança
A ruptura pôs as lideranças frente a frente com a complexidade desse mundo democratizado, em que todos têm acesso à informação e, sobretudo, se sentem no direito de dizer o que pensam. Até então, não era assim que funcionava a relação de liderança. Liderar era top down. O líder dizia o que era e como deveria acontecer. De repente, ele percebeu que não sabe tudo, que não tem controle sobre a informação, sobre o conhecimento, porque agora um grande número de pessoas tem mais acesso, e as fontes são múltiplas. O modelo de liderança sofreu pelo menos três fortes impactos. Primeiro, o poder não está mais concentrado em uma única pessoa, o poder está no grupo, no colegiado. Consciência da interdependência é uma vantagem competitiva. O segundo ponto é que essa nova relação de poder trouxe a necessidade de o líder ser humilde e de dizer que não sabe. Arrogância é a porta para o insucesso. Por último, é preciso coragem para exercer a liderança de forma diferente, tomar decisões no limite do que é conhecido. Um dos grandes dilemas hoje é como lidar com um risco que sequer se tem condições de avaliar no momento presente.
Uma nova forma de engajamento
Eu trabalhei mais do que nunca nos últimos anos, porque as pessoas estão precisando de um lugar para desaguar as suas dúvidas de relacionamento e de ação. Um exemplo: as lideranças estão enfrentando uma grande resistência das pessoas para retornar ao modo de trabalho pré-pandemia, inclusive nos níveis mais altos da organização. Isso significa que o líder precisa ter uma argumentação mais profunda sobre cultura, engajamento. Não basta mais pagar bônus. As pessoas querem significado, saber o porquê de fazer o que fazem do jeito que fazem. E o líder tem grande responsabilidade em dar essas respostas. As pessoas da organização querem saber se o líder tem um propósito. Ao contrário de gerações anteriores, as pessoas sentem-se menos vinculadas a uma empresa e só irão permanecer se tiverem clareza de que o líder vai ajudá-las a crescer, se vai criar um ambiente propício para fazerem o que gostam.
Paixão agora faz parte do Conselho de Administração
Em um painel de conselheiros do qual participei recentemente como facilitadora, um deles falou cinco vezes: não vá para a carreira de conselheiro se você não tiver paixão por fazer isso. A palavra paixão passou a fazer parte do mundo dos conselheiros. Paixão é a capacidade de se conectar com o que você faz.
Quem se conecta dessa forma torna-se um diferencial em qualquer conselho. No começo da trajetória profissional, a paixão está em fazer, na ação. Depois, quando você começa a liderar um grupo, a sua paixão precisa passar a ser o outro. Se você está numa cadeira de liderança, você está prometendo que vai cuidar do crescimento dos outros e da organização: significa dar espaço para o trabalho, para crescimento.
O outro é seu par. Ao se sentar nesta cadeira de líder, você vai entregar para o seu par aquilo que prometeu e também vai fazer isso para o seu acionista e para o seu cliente. Para isso, é preciso um profundo trabalho de autoconhecimento, perceber o que você é e ser capaz de identificar na organização, na qual você está se comprometendo a ficar, o mesmo conjunto de possibilidades de você realizar o melhor de si. Parece romântico, mas as pessoas e as organizações mais bem-sucedidas têm essa prática. No fundo, as pessoas se encontraram ali e, no conjunto, elas realizam esse propósito, essa causa.
“Paixão é a capacidade de se conectar com o que você faz. Quem se conecta dessa forma torna-se um diferencial em qualquer conselho.”
Isolamento da operação é risco para conselheiros
A felicidade não está permeando as organizações, assim como não está na sociedade. Muitas vezes, essa condição reflete uma transição de cultura e você fica neste vácuo. É preciso olhar também para o fato de que as pessoas que trabalham nas organizações vêm dessa sociedade e trazem amostras desse descontentamento. É muito desafiador. Então, o papel da liderança é refinar, aproveitar os comportamentos a favor do grupo comprometido. Há, ainda, a complexidade de várias gerações convivendo em um mesmo lugar. O grande risco do conselho, ao estar isolado da operação, até por questões de governança, é a compreensão desses fatores. Se ele não estuda, ele não conhece. O conhecimento sobre comportamento humano, sociologia, antropologia, psicologia, movimentos sociais, voltou a ser primordial. É preciso aprender como se forma a cultura e como foram as suas transições. Isso tem de ser matéria de formação de conselheiros.
Reputação, oportunidade para criar marca própria
A sua reputação é um acúmulo de coisas que você faz na sua vida. Ela não é herdada. É dada como possibilidade de você criar uma marca sua. E como você constrói? Você constrói a partir da integridade. Na vida, você vai aprendendo que aquilo que promete, tem de entregar, e, a partir do autoconhecimento, vai criando uma percepção clara a seu respeito. Você precisa receber o feedback do ambiente para entender onde você não está fazendo o que prometeu ou, pelo menos, o que os outros não estão percebendo. Assim é que se constrói a marca pessoal, a própria reputação.
Para alguns líderes é tão absurdamente natural ser consistente, que chamo até de intuitivo. Alguns aprenderam que é importante e que é preciso tratar. Não adianta só entender que precisa ser íntegro, tem de ter claro que é preciso construir essa marca para os outros também. Tem ciência nisso. Não é natural, algo que qualquer um faz. As pessoas precisam aprender sobre reputação.
Por exemplo: se você lidera uma organização que tem uma causa muito clara, tem que saber que os discursos endereçados para aquela organização têm de estar permeados por esta crença. Também tem de ter o physique du rôle (postura e aparência adequados ao cargo) próprio. Você precisa ouvir o outro a seu respeito e da organização com coragem. A reputação se forma a partir desses elementos, de ouvir o ambiente, de se aprofundar em você mesmo e de se propor a ser um indivíduo com determinada marca no mundo. Isso vale também na sua família, você é modelo. Quando você está na cadeira de liderança, você tem de ter clareza que está sendo visto como um modelo, para o bem ou para o mal. Boa parte dos pedidos de demissão resultam de desapontamentos com a liderança.
Revisão total da governança
Os escândalos de governança não são privilégio dos brasileiros. Ocorrem em vários lugares do mundo, com empresas diferentes. Veja o caso Madoff (Bernie, responsável pelo maior golpe financeiro da história dos EUA, que foi condenado a 150 anos de prisão, em 2009, e morreu em 2021). Ninguém acreditava quando o acusavam de fraude. Tinha muito de ganância ali, as pessoas não queriam acreditar. Temos casos recentes que abalaram o mercado, com impacto grande em governança, que terá de passar por uma revisão total. As pessoas precisam começar a se indignar e não aceitar as coisas como são.
“O sistema de governança ajuda uma organização a ter um combinado e os seus controles, assim como a resolver o problema em conjunto. Para isso, é preciso ter uma base que não é tangível, que se chama confiança entre os membros.”
Governança é o que arruma o mundo, deveria ser um desejo de todos nós. John Davis (fundador da Cambridge Family Enterprise e professor do MIT) sempre diz: “structure is your friend”. Isso porque, nos momentos de incompreensão, de dificuldade, de conflito, se você tem um conjunto estruturado, você recorre à estrutura. O sistema de governança ajuda uma organização a ter um combinado e os seus controles, assim como a resolver o problema em conjunto. Para isso, é preciso ter uma base que não é tangível, que se chama confiança entre os membros. O intangível é a cola. É surpreendente que só agora estão descobrindo que trabalhar em colegiado precisa disso – o que já se falava desde 1960, na Sloan (escola de negócios do MIT).
Integridade define quem você é
O que acontece no dia que você desmente algo que havia afirmado como verdade? A reputação fica abalada, e reconstruir, muitas vezes, é quase impossível. É uma questão de confiança. Meu pai dizia: ‘vaso quebrado, pode pôr tudo junto, mas fica com trinca. E se esbarra nele, ele quebra de novo.’ Se a pessoa, em algum momento, abrir mão de seus valores, um dia fará isso novamente. Integridade para mim é a definição de quem você é. Um conselho? Cuidado que a vida cobra você. A vida não é feita de tiros curtos. Você tem de ter consciência de que isso põe a sua reputação em jogo. O que isso quer dizer no fim do dia? As pessoas que indicam você, deixam de indicá-lo. Você entender da sua reputação é uma obrigação. Saber o que as pessoas acham de você é fundamental.
Christianne Schmitt é editora do Reputation Feed
christianne.schmitt@ankreputation.com.br